11/02/2011

Os amanuenses e a estação orbital

(um texto caótico)

Prólogo

E como tudo o mais carecesse de sentido, o Emerson inventou um que apaziguasse sua pervagante alma e enlevasse nossa anterior calma. Chegou apressado, algo atrasado,
largando celular e chave sobre a mesa e buscando em um outro invólucro parecido com o do telefone móvel alguma coisa que não sabíamos, ainda, o que era. De cabelos molhados, cuidadosamente repartidos ao meio, franjas para cada lado e recendendo a perfume, como que formalmente preparado para um evento, avançou para um pouco além de nossa ilha, mas ao alcance de uma conversa: “Que horas são? Às oito e vinte e cinco ela vai passar.

I

Que horas são?” E mirava para o espaço de entre os prédios atrás de nós, à esquerda de quem chega ao leal e valeroso Churras do Valdeco. “Que horas são? Alguém tem horas? Ela vai passar às oito e vinte e cinco! O sul é para que lugar?” Nesse instante, recordei-me do coelho atrasado de Alice no País das Maravilhas. “Que horas são?” Ele encarnava o próprio coelho no intróito do caos, do absurdo. E eu, o JB e o Marcelo éramos o Chapeleiro Maluco e sua trupe, apenas que trocando o chá por botijas de cervezas, claro. Sim, nossa anormalidade cotidiana se caracterizava. Tornávamo-nos personagens de nossa própria fauna. Enfim, apocalípticos e integrados.
“Que horas são? O sul é para lá, não é?” E apontava de novo para aquele recorte de céu ladeado por prédios. “Às oito e vinte e cinco ela vai passar!” E nós sem nada entendermos. E o Emerson indo e vindo, circundando a mesa, torcendo nossos pescoços com todo o seu alvoroço. “É uma mulher?” Perguntou o Marcelo. “Quem é que vai chegar?” indagou o JB. “É o ET? Cuidado com o dedo, Emerson”, adverti eu, sempre preocupado com a saúde alheia, inda mais de um amigo. “O sul é para lá, não é?” E, então, desvelou o objeto da caixinha preta: uma bússola! Sim, o antigo instrumento de localização. E apontou-a: “Ah, é! O sul é para lá, mesmo!” jactou-se. “Mas, afinal, o que é que é que vai chegar?”, inquiriu-me o Marcelo que devolvi-lhe a mesma investigação. Nesse instante, o JB levanta-se e põe-se ao lado do Emerson, ambos de costas para a mesa, olhos virados ao céu como em ancestral indagação filosófica. E o Marcelo busca a bússola no seu Iphone. E eu peço outra cerveja.

II

De repente, um ponto luminoso na abóbada do final da tarde. Um ponto veloz, distante,
cortando o eixo imaginário estabelecido entre as construções humanas do Setor Bancário Sul. “O que é aquilo?”, perguntamos. E o Emerson, com o sorriso dos que conquistaram o seu objetivo: “É a estação orbital.” E nós: “Ah...” E o JB: “Ela está iluminada!” E o Emerson: “São as placas solares refletindo a luz do sol”. E nós: “Ah...” E o silêncio imperou e todos os nossos olhares seguiram-na ao longo do SBS como se fosse uma explicação, uma esperança, um alento. Foram poucos minutos, mas nossos olhares altos recobraram uma falta. O engenho humano nos encantava. “Amanhã, nesse mesmo horário, ela vai passar de novo”, explicou-nos o Emerson. “Aí, pede para eles descerem e tomarem uma com a gente”, disse eu e concordou o Marcelo. “É mesmo”, atestou o JB. “Ela está na órbita da Terra”, seguiu o Emerson. “Seriam os deuses astronautas?”, pensei eu sem falar, que era uma frase pronta e uma possibilidade justa. Pedimos mais cervejas.

Epílogo

Depois da astronave, o que nos restava? O tudo ou o nada? O caos que habita esta nossa aparente e funcional estada? Reunidos em torno da mesa, todas essas questões desembocavam num ponto: as cervejas. E bebíamos. E bebemos. E o churras do Valdeco era a nossa estação, o nosso foguete com o qual atingíamos e atingimos o universo.
Tripulantes, passageiros, companheiros de jornadas sem temermos invernos. Sob a marquise estamos embarcados, velozes partimos para as fronteiras mais variadas, algumas, aliás, jamais confrontadas. Então, o Caíque chegou e com seus ditos filosofais e suas explicações pontuais voltei à Alice e recordei o Gato de Cheshire. Estamos escrevendo o livro desta vida. E, personagens, nem notamos. E o caos, o caos pode, sim, ser uma saída.

O caos não é bagunça, é liberdade. Talvez os deuses tenham percebido isso e fundado as cidades. Em ordem e disciplina. Quais as certezas? Por enquanto, as das cervejas.

11/02/11

PH

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